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A gramática do digital

Educação na era digital #3
Vamos, aos poucos, e dolorosamente, compreendendo o real significado da digitalização. A pandemia forçou muita gente a entrar de vez no ciberespaço e a aprender a usar novas ferramentas. O resultado dessa correria desconfortável e desorganizada de aprendizagem coletiva ainda é incerto, mas talvez – espero – crie nas pessoas espaço cognitivo para uma melhor compreensão deste novo paradigma tecnocientífico em que já estamos, de fato, vivendo (alô Thomas Kuhn).
É muito estimulante ver tanta gente acima dos 40 anos lembrando de como dói aprender algo realmente novo. Essa imersão involuntária é importante demais porque talvez acelere o desbloqueio mental das muitas lideranças analógicas que há muito trabalham para impedir que o mundo funcione mais alinhado com a gramática digital. Ignorar essa gramática, como temos ignorado por tanto tempo, nos impede de colher os benefícios e nos expõe inocentes aos perigos da digitalização. Um preço duplamente alto.
Como assim gramática?
A digitalização das nossas relações é um acontecimento da mesma envergadura do que foram a invenção da fala e da escrita. Estamos vivenciando um novo salto em nossa capacidade de comunicação e processamento de informações. O impacto do digital será enorme, e mal começou.
Porém, tornar-se um cidadão do ciberespaço e dominar o digital é ainda desafiador. A “tecnologia” da fala dominamos faz tanto tempo que a evolução biológica já praticamente a incorporou em nosso DNA, somos capazes de aprender nossa língua-mãe desde que nascemos, ou mesmo antes, por imitação e convívio. Para ensinar a leitura e a escrita foram inventadas as escolas e os professores como as conhecemos hoje. O digital, entretanto, é algo recente demais. Ainda não sabemos como lidar com esse novo meio, nem como ensinar as novas gerações a lidar com ele. Estamos literalmente montados em uma bicicleta torta e desgovernada ladeira abaixo. Ou aprendemos rapidamente como equilibrar e acertar o rumo ou vamos nos espatifar na próxima curva.
O sentido amplo da gramática, para além do estudo das partes do discurso, é a arte de produzir e interpretar símbolos (aprendi isso com Marshall McLuhan e Miriam Joseph). E resta claro que os meios digitais operam nesse registro, ou seja, na produção e disseminação de símbolos e significados novos e de novas proporções, doses e combinações daqueles que já conhecemos. E que a nossa exposição a essa nova gramática modifica o que somos, como pensamos e como agimos.
Desde logo, a gramática digital opera em dissonância com a gramática da escrita. Não mais pressupõe linearidade, não mais pressupõe concentração e encadeamento lógico, causa e efeito. Dissolve o espaço e o tempo e amplifica a simultaneidade. Recria a noção de autoridade e de verdade, para o bem e para o mal.
No ponto em que estamos, ainda não é possível um diagnóstico completo. Está, todavia, cada vez mais claro que não se trata apenas de “avanço”. A digitalização ameaça conquistas basilares da humanidade e pode catalizar transformações sociais e políticas muito profundas em curto espaço de tempo. Anuncia tempos difíceis à frente, instáveis, possivelmente violentos.
Mas, por outro lado, coisas incríveis se tornaram possíveis. Podemos, por exemplo, sonhar com um mundo livre dos trabalhos “de merda”, como diria David Graeber, em que poderíamos nos dedicar mais a work e action do que a labor, na perspicaz distinção que faz H. Arendt entre o trabalho necessário para a manutenção biológica (labor) e as obras que nos definem como humanos (work e action).
Desmantelando o senso comum
Em uma mudança de paradigma o senso comum falha quase que por definição. Porque estamos presos ao modus operandi anterior, e temos muito a perder, não vemos o novo. Nossa cognição faz questão de não perceber o novo, por mais óbvio e ululante que ele se apresente. Por mais obsoletos que nos tornemos. É assim com o digital e é assim com nossas concepções sobre como se aprende nessa nova era.
Para mim, o principal preconceito com o digital, por ser conceito previamente estabelecido pelo senso comum, está no tratá-lo como tecnologia e não como linguagem/gramática. É até divertido como as pessoas não percebam que até a palavra “programar” compartilha o mesmo radical da palavra “gramática”: ambas se referem à compreensão e à organização de símbolos. Nossa cognição presa ao paradigma industrial presta mais atenção no computador, na ferramenta, do que naquilo que resulta de seu uso. Na vida “em rede” esquecemos de que participamos, junto com as máquinas, do ciberespaço e que essa conexão cobra um preço. Ela nos modifica.
Devo insistir no seguinte: a escola hoje ignora sistematicamente o digital e isso é muito, muito perigoso. Vivemos crentes de que se trata de mais uma tecnologia que, como as demais, somente será aprendida bem depois da escrita. Uma especialização que será alcançada por alguns, em um curso superior. Mas acontece que se a educação não se adaptar ao digital e aprender a dialogar com o digital para desenvolver o humano, desde o seu início, o digital vai destruir a educação, como está destruindo. E vai destruir a sociedade como a conhecemos junto.
Vou explicar. O problema é que, sendo o digital uma linguagem, não é possível manter as pessoas imunes a ele. Uma vez expostas, as pessoas aprendem, um aprendizado incompleto, mas aprendem. Nosso cérebro absorve linguagens. Nasce pronto para isso. Absorve muita coisa antes de entrar nas camadas de abstração da escrita ou da programação.
E quando a escola ignora o digital, o youtuber passa a ter mais autoridade do que o professor. A comunicação oral e visual passa a ser mais relevante do que a escrita. Mesmo que a pessoa não saiba ou não goste de ler, a exposição ao digital a leva outro patamar de acesso à informação, não importa a qualidade e a veracidade, e isso a empodera. Objetivamente. Quer dizer, seu acesso ao digital e ao virtual a torna efetivamente capaz de alterar o real.
Devemos levar a sério um cenário em que os meios digitais se tornem capazes de substituir a leitura e a escrita, torná-las tecnologias obsoletas. Tal como os hieróglifos. A comunicação pode convergir completamente para memes, gifs, vídeos, podcasts, neurolinks. Por que não?
Nosso preconceito de letrados (sim, se você conseguiu ler este texto até aqui, você é um desse bando) nos faz achar que o digital está hierarquicamente abaixo da escrita e da leitura. Mas, cada vez mais, a tendência é justamente a oposta. O desafio da educação da era digital é ensinar e manter viva a leitura, a escrita e todas as importantes virtudes que delas derivam.
O convívio entre duas gramáticas
Você fica exausto após reuniões virtuais porque seu cérebro não está (ainda) completamente pronto para isso. Nossa estrutura cerebral é altamente plástica, mas moldá-la requer muito esforço e energia. Uma criança em fase de alfabetização também fica exausta após ler um texto de mil palavras. Alguns adultos que deixaram de ler, ou nunca leram muito, idem.
Os estados mentais para o digital e para a leitura concentrada são distintos, até antagônicos. Estar preparado para ambos requer um condicionamento não trivial, tal como conjugar força e flexibilidade em seus músculos.
A questão com a capacidade de leitura concentrada é que ela é fundamental para o desenvolvimento da autonomia e do pensamento crítico, atributos por sua vez fundamentais para a democracia, a ciência, a tolerância e o convívio entre distintos (posto que versões analógicas em diferentes trajetórias de formação). Se as pessoas não adquirirem isso, não souberem como atingir elevados graus de consciência, vamos colher somente o lado obscuro da digitalização.
Ao contrário das eras anteriores, quando as elites empurravam o povo iletrado para o trabalho que existia no campo e na indústria, trabalho do tipo labor que cada vez existirá menos, temos que cuidar para que, nesta nova digital, não sejamos todos lançados em uma arena frenética de sinais contraditórios, amplificados por doses cavalares de dopamina, em que todos contra todos vão se acotovelar por espaço até que ninguém mais saiba nem como manter as infraestruturas que nos trouxeram até aqui.
O desafio da educação, nesse ponto, não é simplesmente incorporar o digital. É compreendê-lo, em toda sua profundidade. É, a partir das novas condições que ele nos coloca, reconfigurar abordagens, métodos, tempos e expectativas. Não é ter o digital como meta, como ponto de chegada, como algo a mais que precisa ser ensinado. É descobrir como partir da gramática digital para chegar na autonomia, inclusive na autonomia digital. Tal desafio, ainda amplamente não respondido, inclui reconhecer que, daqui para frente, educar nunca mais será a mesma coisa. O educando mudou, a cognição mudou, as ferramentas mudaram. Ainda que o objetivo final permaneça o mesmo.