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Como nasce o mal?

Entrei bem fundo nas Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt em 2016, em um momento em que a conjuntura do mundo já convergia claramente rumo aos tempos bicudos de hoje. Trump estava para ser eleito nos EUA e vários outros populistas protofacistas já estavam se criando por aí, e por aqui. Estava na moda ler, ou reler, esse livro já clássico, que é quase um tratado sobre os intrincados processos políticos, históricos e culturais que desaguaram nos dois regimes mais insanos e genocidas do século XX, o nazismo de Hitler e o comunismo de Stálin.
A coisa mais interessante desta leitura, pelo menos para mim, não foi o fato dela ter me maravilhado com as suas inúmeras ótimas formulações e os seus infindáveis exemplos. O interessante, mesmo, foi entender, em detalhes, como todo aquele horror foi possível. Como se chega lá. Uma pergunta que eu já havia me feito muitas vezes. Os nazistas dos filmes são tão caricatos que a gente tem dificuldade de imaginar que puderam ser mesmo reais. Como foi que milhões de pessoas foram levadas a acreditar que aquilo fazia sentido, que aquilo era a coisa certa a ser feita? Não eram milhões de marmotas. Eram milhões de cidadãos de países desenvolvidos, gente com educação, com acesso à informação. Eram sociedades com altos teores de cientistas, intelectuais e artistas. Como puderam? Ou pior, o que as levaram a querer?
Compreender o processo, ou melhor, acompanhar os muitos processos inter-relacionados, costurados pouco a pouco pela análise de Arendt, é o grande ganho. E “como nasce o mal?", o mal absoluto, institucionalizado em todos os aspectos de uma sociedade inteira, é a grande pergunta.
Estamos acostumados a olhar para o produto acabado, o povo tomado pelo fanatismo e a violência desmedida e desumanizada contra os dissidentes, sejam eles conscientes ou não de sua posição de dissidência. Bandeiras, símbolos, multidões, armas e cadáveres. A grande angular tentando captar toda a extensão do monstro depois de crescido. Mas o detalhe realmente impressionante de todo o processo é quase invisível. O momento em que nasce a crença. Em que o mal passa a fazer sentido para cada uma das milhares de partículas humanas, racionais, pensantes. Partículas que se juntam, necessárias, para erguer e sustentar o terror. Partículas que, esvaziadas e reconfiguradas, se tornam irreconhecíveis. Perdem sua individualidade por ficarem paradoxalmente solitárias, esmagadas entre todos e ninguém. Sozinhas, se tornam supérfluas, descartáveis.
Na História, examinada com detalhes desconcertantes em Origens, a construção das condições para que o nazismo fosse possível começa muito antes da década de 1930. O antissemitismo, o racismo e o imperialismo são heranças nefastas recebidas do século XIX. Um pacote conexo de crenças e doutrinas que em 1930 se encontrava já amplamente disseminado na Europa. Pronto para ganhar escala. Pronto para se tornar dominante. Um processo longo, de muitas etapas, percorrido com a sensação de que cada passo foi só um passo, insignificante, seguro.
O contexto objetivo da crise econômica é a parte da explicação mais frequentemente lembrada para justificar a gênese da barbárie. A frustração material prolongada é, sem dúvida, uma poderosa aliada para a mobilização popular. É lenha para as caldeiras das milícias que prometem uma nova ordem. Soma-se a esse caldo cinzento o apelo ao nacionalismo, herdado do orgulho imperialista, e os mitos racistas de povo superior e justiça histórica, já naturalizados na experiência cotidiana de milhões de pessoas, e estará feito o estrago.
Porém outra parte da explicação do desastre, tão importante quanto, fica quase sempre em segundo plano. Ou mesmo completamente esquecida. Talvez porque ela coincida demais com ideias e aspirações que valorizamos e, por isso, não nos sentimos nem um pouco confortáveis ao vê-las relacionadas com a eclosão da barbárie. Refiro-me especificamente a todos os componentes técnicos e racionais que também fizeram parte, necessariamente, dos fundamentos dos totalitarismos do século XX.
Apesar de recorrentemente acusados de irracionais e anticientíficos, esses regimes e seus artífices sempre estiveram muito mais próximos das fronteiras do conhecimento do que toleramos admitir. Seus fundamentos ideológicos eram, antes de tudo, baseados em argumentos científicos. Podiam até ser versões toscas e incompletas, leituras estáticas e simplificadas de teorias que são, por natureza e construção, dinâmicas. Assentavam sua ideologia sobre bases científicas porque isso a legitimava. O nazismo se guiava por um racismo de cunho profundamente darwinista. O comunismo, por sua vez, seguia certezas demostradas a partir do materialismo histórico fundado por Marx. Ambos eram racionais, orgulhavam-se de seu racionalismo, diziam-se superiores aos misticismos que retardavam o progresso humano, tais como a religião, a democracia e a solidariedade entre os povos.
Ciência e tecnologia tiveram papel central para a sustentação dos regimes totalitários, gostemos ou não dessa realidade. O rádio, o cinema, os meios de transporte e logística, a grande indústria química e metal-mecânica. Sem as técnicas e os meios de comunicação em massa, sem o controle centralizado e a eficiência das grandes escalas de produção, sem o poder devastador das novas armas de guerra, o projeto maníaco de construção de uma nova ordem não teria ido tão longe.
Uma importante lição que tirei dessa leitura foi parar de me preocupar em demasia com o populismo fanfarrão que nos assola. Mesmo que radicais temporariamente majoritários resolvam carregar nas tintas, avancem para além das bravatas e causem mal real (como de fato estão causando). Enquanto continuarem a praguejar e a lutar contra a ciência, a valorizar um passado embolorado, a reiterar demonstrações públicas de irracionalidade viril, estaremos relativamente à salvo.
O problema pode ficar grande, grande mesmo (e com esse eu continuo preocupado), quando um desses líderes de marionetes realmente for capaz de explorar as novas tecnologias em sua plenitude e de empregar um sólido discurso científico, racional, para sustentar ideologias de salvação e de transformação total da humanidade. Alguém capaz de mobilizar a energia das massas descontentes, privadas de conforto material, vítimas de pandemias e de desastres ambientais, rumo a uma nova utopia.
Lendo o livro de H. Arendt, publicado na década de 1950, senti um calafrio ao me deparar com este trecho:
The Okhrana, the Czarist predecessor of the GPU, is reported to have invented a filling system in which every suspect was noted on a large card in the center of which his name was surrounded by a red circle; his political friends are designated by smaller red circles and his nonpolitical acquaintances by green ones; brown circles indicated persons in contact with friends of the suspect but not known to him personally; cross-relationships between the suspect’s friends, political and nonpolitical, and the friends of his friends were indicated by lines between the respective circles. Obviously the limitations of this method are set only by the size of the filling cards, and, theoretically, a gigantic single sheet could show the relations and cross-relationships of the entire population. And this is the utopian goal of the totalitarian secret police. (…) this dream is not unrealizable although its technical execution is bound to be somewhat difficult. If this map really did exist, not even memory would stand in the way of the totalitarian claim to domination; such a map might make it possible to obliterate people without any traces, as if they had never existed at all.
Pelo sim, pelo não, foi depois de ler esse parágrafo, imediatamente depois, que decidi apagar minha conta no Facebook. A tecnologia, impraticável à época, já estava pronta. Assustadoramente pronta.