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Guerra e Paz

No dia 12 de junho, as forças da Europa Ocidental atravessaram as fronteiras da Rússia, e começou a guerra, ou seja, teve lugar um acontecimento contrário à razão humana e a toda a natureza humana. Milhões de pessoas praticaram, umas contra as outras, uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontra nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros, e, naquele período, as pessoas que agiam assim não consideravam que nada disso fosse um crime. Liev Tolstói (Guerra e Paz, Tomo 3, Parte 1, Capítulo 1, Tradução de Rubens Figueiredo)
Guerra e Paz, publicado em 1869, é um daqueles clássicos incontornáveis. Um livro enorme, enciclopédico, que mistura fatos e personagens históricos, narrativa ficcional e inserções ensaísticas. Talvez você já tenha começado a lê-lo e desistiu pelo caminho. Talvez até mais de uma vez. Entendo perfeitamente, passei por isso também.
Muito já foi dito sobre Guerra e Paz e não é o caso de redizer. Meu registro aqui passa por um ângulo mais pessoal, as impressões provocadas por esse texto russo do século XIX em um brasileiro do século XXI, atônito e perplexo com o desenrolar desta verdadeira guerra civil permanente que define há tempos o nosso cotidiano.
Tanto lá como cá, a guerra é observada de longe por uma elite absorta em suas intrigas e pequenos interesses particulares. Uma nobreza hereditária, conservadora, limitada. Todas as complexidades das mudanças em curso na Europa do século XIX não lhes dizem respeito, não são dignas de atenção para além do pitoresco, do personalismo. Napoleão é uma força que eles não compreendem, não alcançam. Não passa, para eles, de um exemplo de vulgaridade e decadência. Um imperador ilegítimo, sem sangue nobre, sem modos. A elite da Rússia invadida pelo enorme exército de Napoleão em 1812 vive ainda no século XVIII, com seus servos, produção agrária e festas na corte. Muito parecida com a elite portuguesa que fugiu para o Brasil em 1808, por causa do mesmo Napoleão. O mesmo ethos de vida que sempre balizou a elite daqui. Mas, ao contrário do que aconteceu na Rússia, por aqui essa nobreza enraizada no século XVIII nunca foi realmente afastada do centro do poder e continua, até hoje, a ser bússola de nossa sociedade. Isso torna Guerra e Paz estranhamente familiar para um brasileiro mais de 150 anos depois de escrito.
Tolstói involuntariamente nos presenteia com uma chave mestra. É esquemática e caricata mas certamente funciona muito bem para construir personagens para o Brasil de hoje. Personagens ancorados em mundos tão distintos entre si que obviamente jamais serão capazes de compreender uns aos outros. Um saco de gatos cultural que soaria inverossímil em outros países. Mas, impressionante, somos nós. Uma elite ainda do século XVIII, dependente de servos, de propriedades e produção tosca, alheia, futriqueira, repleta de maneirismos e protocolos. Uma horda de servidores públicos e militares com o coração no século XIX. Repartições, fardas, ordem e progresso. Montados em cavalos e sonhando ainda com ferrovias e fábricas. Intelectuais e profissionais liberais presos ao século XX, com todas as suas sólidas verdades aprendidas de manuais mal traduzidos. Instituições, corporações, carreiras, projetos de país. E, de resto, as novas gerações que poderiam estar vivendo o século XXI mas não o estão por falta de espaço. São os que daqui saíram, para quem o Brasil se tornou apenas um lugar pitoresco para se passar as férias. E são os que aqui ficaram e que não têm outra alternativa a não ser destruir, via niilismo, crime ou farsa. Destruir para abrir algum espaço dentre os novelos emaranhados desde 1808.
Nosso impasse hoje é assim. Coloque em uma sala um representante de cada século e nada será conclusivo. Sairá briga? Papo de louco? Ou alguma coalisão bizarra? Provavelmente, na vida real, convergiria rapidamente para a recorrente afirmação do poder conservador e preguiçoso da doce nobreza do século XVIII, mas na ficção pode ser mais interessante do que isso. Fica aqui anotado: um dia explorar melhor esses arquétipos. Não faz mal que pareça pitoresco. O Brasil é mesmo pitoresco.
Outro maná de Guerra e Paz que soa feito música para o habitante do século XXI, particularmente para aquele que vive deslocado no Brasil de hoje, é seu onipresente anarquismo. Tolstói enxerga o desenrolar da História como o resultado das “milhões de causas individuais”, milhões de ações e decisões somadas, que assim empurram de tempos em tempos a humanidade para a irracionalidade e para guerras tão inevitáveis quanto inacreditáveis. Não importam os líderes, não existem heróis no sentido clássico de heroísmo. O que aconteceu na Europa no início do século XIX, milhões de pessoas se deslocando em guerra rumo ao oriente e depois milhões em refluxo rumo ao ocidente, como ondas agitadas num gigantesco recipiente de líquido humano, não aconteceu devido à vontade de líderes. Tolstói retrata Napoleão, o czar Alexandre, os grandes generais. Todos são tolos, são escravos de seus postos, de seu protagonismo. Não são livres, não possuem autonomia. Os fatos se realizam por meio deles, não por causa deles.
A concepção de liberdade em Tolstói é extremamente atual. Subscrevo-me bastante alinhado à liberdade anarquista de Tolstói em Menos Gente. O poder político nos subtrai liberdade. Só é livre quem tem poder sobre as próprias escolhas. A aristocracia de Guerra e Paz, desocupada e frívola, não tinha liberdade. Os mais altivos a buscavam, sempre sem sucesso, no serviço militar, nas sociedades secretas, na aventura, na caça. Porém, são somente os personagens mais distantes da nobreza, mais próximos da natureza e da simplicidade camponesa, que podem flertar com a verdadeira liberdade e a felicidade.
O anarquismo, niilista ou não, é alternativa natural para o brasileiro que cansou da obviedade violenta das instituições e políticas construídas para preservar o século XVIII. Instituições obsoletas discutidas e disputadas com base em argumentos e ideologias do século XX, e que continuam funcionando com a ferrugem e o bolor do século XIX. Não há respostas nas instituições, tampouco fora delas. Nada a encontrar em si mesmo, e nada no outro. Paz, liberdade e felicidade precisam ser buscadas sabe-se lá onde. Chegamos em um ponto em que distopias se confundirão com utopias. Aconteça o que acontecer, que seja ao menos diferente do que temos hoje. Ninguém aguenta mais o presente. Em Guerra e Paz isso é profundamente vivenciado por Pierre, salvo pelo esvaziamento de si perante o poder sanitizante da guerra e do sofrimento. Um novo equilíbrio, mais claro, mais certo, alcançado graças à experiência radical da violência.
A narrativa de Tolstói é firme, direta. Em sua técnica, a ambientação é sempre poderosa. O cenário é sempre uma força motora da narrativa. Suas descrições não são apenas descrições. Antecipando o cinema, usa ângulos, amplitudes, cores quentes e frias. Vai do pensamento íntimo ao sentimento coletivo. Dos detalhes da decoração até as grandes paisagens. Tudo sempre conectado ao objetivo maior de narrar, revelar e projetar a psique, o sentido, o movimento.
Muita qualidade técnica faz a coisa parecer fácil. É a mesma coisa com a música, com o esporte. Nos grandes artistas e atletas, a técnica desaparece ofuscada pela performance. Mas ela está lá. Só se escreve um monumento como Guerra e Paz com muita técnica. Com suprema clareza do que dizer, de como dizer, de como organizar tudo isso em rotinas e trabalhos a serem executados, dia após dia. Escrever cada parágrafo com a certeza de que terá perfeito encaixe no todo. Manter inabalável compromisso com o estilo e todas as variações, perfeitamente mapeadas, que dão colorido e polifonia ao texto. Juntar a tudo isso fatos e personagens reais. Temperar com suas próprias opiniões. Sempre com respeito ao leitor, à inteligência do leitor.