Cheguei até Sven Birkerts por causa de meu interesse quase obsessivo em compreender a evolução e as trajetórias das tecnologias digitais e os seus impactos sobre as pessoas. Birkerts é um exímio ensaísta, daqueles que têm realmente algo para dizer e o dizem bem. Vários bons autores que tratam dos desafios e dos perigos deste nosso novo mundo digital volta e meia o adulam, incluindo os combativos e admiráveis Nicholas Carr e Jaron Lanier.

The Gutenberg Elegies, publicado em 1994, foi o livro que lhe rendeu ampla notoriedade. Apoiado nas profecias de Marshall McLuhan e em suas próprias experiências com tecnologia e literatura, Birkerts colocou sobre a mesa um assunto difícil e importante. As tecnologias digitais tinham o poder de alterar nossa relação com a leitura e, em especial, com a literatura. E alterar para pior. A dissolução da atenção, provocada e requerida pelas mídias digitais, tornava cada vez mais escassas as habilidades pressupostas pela leitura, como a concentração e a disponibilidade mental para se entregar sem distrações a textos longos e complexos.

Só que eu, enfim, ao invés de começar pelo clássico, cujo conteúdo eu já meio que conhecia de segunda mão, fui atrás saber se havia algo mais recente. Encontrei Changing the Subject, de 2015. Uma coleção de dezessete ensaios sobre esse mesmo assunto, o destino da arte e da literatura na era da internet, revisitado vinte e um anos depois das elegias a Gutenberg.

Resumindo o que aconteceu, comecei a ler o cara por um motivo e virei fã por outro. Ele me convenceu de que, mais do que nunca, precisamos da luz das boas leituras. Mais do que nos damos conta.

Birkerts volta a encarar de frente o problema que talvez seja o maior e mais importante desafio de nosso tempo. Sim, a vida embrenhada no digital efetivamente nos modificou e em muitos sentidos nos tornou piores. O modus operandi das tecnologias digitais (telas, redes, estímulos visuais e sonoros, e por aí vai) reduz nossa capacidade de pensar em profundidade, de matizar, de seguir empaticamente um longo argumento, de perceber muitas das sutilezas e belezas da linguagem, escrita, falada ou mesmo projetada. Ele, um literato analógico, nascido em 1951, poderia passar o tempo todo a destilar esses e outros lamentos, reafirmar suas frustrações com o presente e o futuro da literatura e a detalhar as muitas evidências já conhecidas pelos neurocientistas de como as horas perdidas em timelines podem arruinar conexões neurais que foram laboriosamente construídas por anos de estudo e leitura. Mas não. O que ele faz neste livro é distinto. Ao invés de praguejar contra o digital, Birkerts inverte o sentido do argumento. Ele agora se empenha em nos provar que a arte e a literatura ainda importam. Que na era da internet, justamente por causa da internet e do digital, elas importam ainda mais. Porque elas podem ser o melhor remédio que dispomos contra os efeitos deletérios da digitalização das mentes. Birkerts entendeu que o nosso grande problema não é salvar a literatura. O nosso grande problema, real, urgente, enorme, é salvar as pessoas e a civilização. Antes que o digital as reduzam a nada.

Os caminhos para a saída, para escapar das arapucas cognitivas e comportamentais que a digitalização nos impõe, tanto no nível individual quanto no coletivo, passam, segundo o nosso amigo, nesse ponto já estou abraçado e de rosto colado com ele, pela reafirmação de que é a linguagem que nos torna humanos. Muitos de nós precisam ser lembrados disso. Outros tantos precisarão ainda descobrir o que isso significa.

A supremacia das tecnologias de informação faz com que elas projetem sobre tudo suas premissas, inclusive as ocultas. Torna-se tentador igualar linguagem e informação. Mas acontece que nossa linguagem carrega muito mais do que informação e vai muito além dos mecanismos de causa-efeito exacerbados pela lógica digital. Esse é o fato crucial que não pode ser esquecido. Em um dos ensaios do livro, ele recupera a seguinte pérola do filósofo norte-americano R. W. Emerson, “a linguagem é poesia fossilizada”, para nos lembrar que as palavras foram criadas primeiro pela poesia. Ao nascerem, todas as palavras são apenas meras tentativas para tentar exprimir o sempre crescente repertório de novidades que caracteriza a experiência humana. As palavras recém-nascidas somente aos poucos se firmam, amadurecem, acumulam-se na linguagem, transformam-se e transformam a própria linguagem, em um processo errático, pontuado por ambiguidades e nuances, que pode se estender por séculos. A linguagem, portanto, é intrinsecamente impregnada de aventura humana, é testemunha de todas as nossas jornadas ancestrais. Tudo está inscrito nela, as emoções, os conflitos, as dores e as maravilhas das transformações sociais, tecnológicas, econômicas. Tudo que um dia foi novo requereu uma nova palavra. Em algum momento mobilizou atenção, sensibilidade, inteligência, conhecimento e criatividade. Verter a experiência, a complexidade da experiência presente, para uma palavra é papel do pioneiro, do escritor-poeta, do leitor de seu tempo. O profundo sentido do fazer poético a que se referia Aristóteles.

Ler e escrever, profundos, são antídotos para não sucumbirmos à galopante dislexia instaurada entre o real e as explicações falidas, sintoma incontornável de tempos de grandes mudanças. A perplexidade, a incompreensão, o esvaziamento. Nós estamos bem no meio de uma inflexão histórica. Talvez a maior, mais rápida e mais profunda de todas. Para sobreviver ao vácuo, à fenda, à distensão que se esgarça sob os nossos pés e sobre as nossas cabeças, é preciso recuperar e ampliar a linguagem, as linguagens, a nossa capacidade de interpretar e saber.

Um movimento antes qualitativo do que quantitativo. Escapar da inundação informacional, da fragmentação da atenção, da ansiedade. Um movimento, não por acaso, para o sentido (aquilo que se sente), para o cultivar da atenção, para a imaginação sustentada. Para matérias-primas que nos permitam reinventar a experiência presente e ressignificar o ser humano.

Uma enorme riqueza de experiências permanece codificada nas palavras e nos textos. Experiências vindas do passado, distintas das nossas, porém muitas delas vividas e provocadas também por grandes mudanças e desafios existenciais. Ler. Ler muito. Ler as obras e o contexto de cada tempo. Praticar arqueologia da linguagem. Há muito a ganhar na compreensão do que significaram as obras e suas palavras. E o que podem ainda significar para o nosso tempo, especificamente para os nossos desafios. Para os nossos dilemas, trilemas, n-lemas, as muitas novidades que hoje experimentamos. Situações que para serem efetivamente tratadas exigirão da linguagem multiplicação e transmutação.

O grande desafio, hoje ou logo ali na frente, é que as tecnologias estão transformando as pessoas em autômatos cada vez menos capazes de interpretar e cultivar linguagens, especialmente nas dimensões que transcendem os limites objetivamente dados pelas próprias tecnologias digitais e suas limitações nem sempre tão evidentes. Birkerts sabe disso, e sabe pelo menos desde 1994. Por isso, para ele, difundir a experiência literária é tão radicalmente relevante. Porque não se trata apenas de mudar o assunto e colocar a literatura no lugar da internet. É preciso ir além e mudar também o sujeito, resgatar as muitas dimensões subjetivas das pessoas (que no inglês subject fica fácil de exprimir).

A literatura, por sua natureza, pode proporcionar experiências transformadoras, libertadoras. Experiências capazes de transcender as barreiras invisíveis que atuam encaixotando as pessoas. A sensação de arrebatamento que nos preenche ao percorremos absortos um bom romance; o dia comum transformado de repente, conectado e amplificado pela lembrança de cenas, frases, pensamentos; o cotidiano percebido através de lentes novas, alterado por uma difração sutil, pelo olhar de um personagem, pela verve de um autor tornado confidente; o vazio no estômago ao final da última página; o lugar privilegiado dedicado ao livro terminado em nossa estante (para lembrarmos de tudo, agradecidos, sempre que o reencontrarmos).

Birkerts nos conta, emocionado, o tamanho da importância desses pequenos e profundos momentos, acumulados por toda uma ávida e longa vida de leitor. E se admira com a quase sobrenatural tenacidade de alguns livros queridos que, ao serem revisitados, ainda se mostram capazes de provocar os mesmos sentimentos e introspecções profundas. Leituras que foram basilares para a formação de sua consciência e a educação dos sentidos pelos quais experimenta o mundo.

Essa disposição generosa de Birkerts com o sutil, com o sublime, com os desdobramentos por vezes intangíveis e inomináveis que a literatura é capaz de nos proporcionar, me despertou, acendeu, vitaminou.

A esperança que Sven Birkerts deposita na literatura funciona como um chamado. A literatura, inevitável, se estende do passado, ocupa o presente e será o nosso futuro.

Ela me disse que era para eu levar mais a sério aquela minha velha vontade incrustada de escrever. Para eu dar um jeito de finalmente transformar essa vontade em prática, em rotina, em ofício talvez. O desafio de buscar na linguagem, e trazer para dentro dela, antídotos para a afasia coletiva que nos oprime. Buscar por nexos e reflexos, agarrar os espectros fugidios dos sentidos e das explicações, compreender os gestos, as pequenas ações, os detalhes. Compor disso tudo narrativas capazes de demarcar e transmitir alguma nitidez de e para o nosso tempo. Mas, principalmente, escrever para proporcionar a quem eventualmente se disponha a ler os momentos de transcendência e as revelações que Changing the Subject descreve e nos convida a experimentar.