5 minutos de leitura
No vácuo da abstração

Educação na era digital #2
A capacidade de abstração está em crise? Ouço professores reclamarem que a cada nova turma aumenta a dificuldade dos alunos. “Eles estão simplesmente piorando, mais e mais desinteressados, incapazes de compreender ideias abstratas.”
Isso me intriga. Afinal, “nativos digitais” não deveriam conviver mais naturalmente com abstrações? O meio digital não é por excelência uma abstração? Como assim crianças e jovens imersos em posts, dissolvidos no virtual, não conseguem compreender e manipular os conceitos e construções de baixa complexidade a que são expostos na escola?
Essa tal “perda na capacidade de abstração” é um daqueles fios-de-meada que vale a pena investigar. Porque me parece claro que estamos presenciando em primeira mão a queda de nossas crianças e jovens no vácuo causado pela distensão de pelo menos três grandes forças:
-
A compulsão positivista da educação brasileira;
-
A fragmentação da concentração promovida pelo consumo digital;
-
A elevação dos requisitos criativos para o protagonismo.
Ordem e progresso
Em meu artigo anterior, Entre ontem e amanhã, defendi buscarmos também inspiração em ensinamentos do passado para examinar os desafios do presente. Recuperar a relevância da rica tradição humanista que nos trouxe até aqui. E, de quebra, aprender que no passado há também muitas bobagens.
Para nosso azar somos até hoje prisioneiros de uma delas. O eterno fascínio tupiniquim com o positivismo belle époque do tio Comte. O idealismo paralisante incrustado desde a raiz desta república.
Ordem e progresso: a ilusão de que é possível sinergia entre rigidez e movimento, atrelada a uma profunda síndrome de seguidor, de incapacidade criativa, de crer somente no que é oficial e comprovado. O conhecimento como obra acabada, para ser admirada e respeitada.
Nossa educação é assim ruim porque sempre foi positivamente idealista. O regimento, as regras do MEC, as bases curriculares exaustivas, o questionário para a prova, a matéria para o vestibular, o ENEM. Um projeto compulsivamente roda-presa que acredita que para ganhar escala precisa rigidez.
A questão da capacidade de abstração, vamos admitir, nunca foi lá muito importante. Numa escola de saberes catalogados, funciona apenas como um filtro para selecionar os mais aptos dentre os mais bem nascidos. Para reproduzir a elite basta uns poucos – é importante para o modelo que sejam poucos – emergindo do pântano da decoreba capazes ligar lé com cré com alguma autonomia.
O pressuposto da atenção
O que mudou é que hoje as pessoas não tem mais espaço mental para todo o entulho curricular que é a base do nosso sistema educacional.
Nosso modelo de escola está sofrendo um impacto gigante porque compete exatamente no mesmo ringue dos aplicativos. A atenção se tornou o recurso escasso da nova economia.
Se a escola pressupor atenção vai perder sempre. Alunos, prestem atenção nisso, não naquilo. Por favor, só se o professor mandar! Hã?
A salvação para a escola é desenvolver a atenção. Mudar o centro de gravidade. Alunos aprendendo e não professores ensinando. Organizar ativamente a experiência de aprendizagem com projetos. Fazer com que o propósito de aprender se desdobre em motivação e foco.
Na era digital cada um de nós precisa aprender a desenvolver e regular sua própria capacidade de atenção. A lógica do consumo digital atua para destruir essa capacidade. Ou você ainda acredita que é capaz de longos períodos de atenção? Talvez porque se lembre de que já foi capaz. Textos longos, concentração, raciocínio abstrato, argumentos, autonomia intelectual. Estão cada vez mais difíceis! A cognição está sendo modificada pela internet.
E daí vem o avô e fica encantado com a capacidade do neto em navegar no celular e usar sozinho o tablet. O problema é que nem o avô nem a escola percebem direito o que está acontecendo. Uma criança demasiado exposta a aplicativos será certamente confinada ao rebanho dos consumidores digitais: hiperativos, fragmentados de atenção e propósito.
E achar que vai combater isso com o modelo de escola senta e presta atenção é pedir para ser ridicularizado. Pior, é um beco sem saída. Vácuo.
Protagonismo criativo
O problema ao quadrado é que enquanto isso a caravana passa. A economia digital e suas enormes oportunidades precisam de gente capaz de navegar em níveis cada vez mais sofisticados de abstração, de autoconhecimento, de capacidade crítica. Criadores digitais são muito diferentes de consumidores digitais. Criaturas praticamente antagônicas.
Nosso desafio é grande. Ainda achamos, tragicamente, que avançar no digital é multiplicar consumidores digitais, dar acesso, investir em infraestrutura, trocar cadernos por tablets, renovar nosso catálogo de cursos para incluir as novas tecnologias. Ainda insistimos em manter a ordem na esperança de obter progresso.
O caminho para o digital é outro, é multiplicar gente criativa. É horizontal. É colocar mais e mais pessoas no loop.
Não há investimento que baste em educação se a escola continuar reproduzindo letras mortas e pressupondo estabilidade e atenção. Isso não serve para combater os efeitos degenerativos da economia da atenção e tampouco para estimular o necessário protagonismo criativo. Os jovens intuem isso. Sabem que estão ficando para trás. Estão ansiosos mas não enxergam a saída.
O principal objetivo da educação sempre foi e continua a ser o de desenvolver a abstração. É generalizando a experiência em novos conceitos, teorias, modelos, significados, que o ser humano se torna capaz de fazer mais com o mesmo hardware natural de sua cabeça.
As respostas para a educação na era digital passam necessariamente por renovar seriamente o projeto de criar as condições para o que ser humano seja mais.