Educação na era digital #1

Está claro que a educação precisa ser transformada. Mas antes de partir para a prática é prudente colocar as ideias no lugar. Vou tentar resumir nesta nova série de artigos um pouco do que estudei e refleti nos últimos tempos. Sobre o que percebo de errado com a educação de hoje, com sugestões do que fazer para trazer a educação para o século XXI.

A angústia do “entre ontem e amanhã” foi descaradamente surrupiada do “entre passado e futuro” que dá título a uma coletânea de ensaios de Hannah Arendt. Lá está, dentre muitas pérolas, uma defesa poderosa do conservadorismo na educação. Fiquei desnorteado quando li, afinal somos todos invariavelmente progressistas quando se trata de educação, não é?

Muito bem, e se para avançar na educação for necessário reencontrar o passado? Porque talvez não se trate de escolher entre avançar ou regredir, e sim de escolher corretamente o que cultivar.

O argumento da H. Arendt é que não se pode desprezar o conhecimento que nos tornou humanos. O conhecimento destilado geração após geração, as lições aprendidas pela civilização. Não faz sentido recomeçar da estaca zero a cada nova geração.

O susto do óbvio: toda nossa recorrente conversa de “construir saberes” precisa ser melhor balanceada!

Uma coisa é educar para que os jovens saibam construir e andar com as próprias pernas. Outra coisa é achar que isso se faz negando os atalhos que já foram construídos. E uma terceira coisa fundamental sobre essas duas: o equilíbrio entre ontem e amanhã precisa estar ancorado numa compreensão clara do hoje, sem a qual não é possível distinguir quais atalhos valem realmente a pena.

O hoje é uma confusão

E não é de hoje. Em 1900 o filósofo e educador John Dewey publicou The School and Society, livro em que faz uma análise brilhante sobre como as necessidades e a ideologia de diferentes períodos da humanidade impregnaram os currículos e a organização do ensino.

Dewey

Ainda hoje aprendemos primeiro português e matemática porque era disso que sociedade mercantil do século XVI precisava. Os ensinos médio e universitário são ainda organizados em disciplinas com origens medievais e renascentistas. As escolas técnicas refletem as demandas do industrialismo dos séculos XIX e XX, com ecos nas guildas e corporações de ofício. São muitas camadas incrustadas. Prontas para sofrerem disrupção.

Ler Dewey é revelador e assustador. Os dilemas de mais de 100 atrás permanecem vivos! A educação continua refém de um amontoado desconexo de soluções orientadas para problemas antigos. E quase ninguém se dá conta disso “porque sempre foi assim”.

A confusão se amplia quando a crítica ao tradicional não distingue entre forma e conteúdo. E o debate se torna ainda mais alucinado sempre que se descola dos desafios objetivos do presente e se refugia em teorias, regimentos e interesses corporativos.

Desapegar da forma

O melhor método, a melhor organização, o melhor currículo. Tudo isso não passa de forma e está do lado negro da força. O lado que pode e deve ser superado.

A era digital permite muito mais experimentação, muito mais flexibilidade. A tecnologia viabiliza a auto-organização e a adaptação em tempo real, o ajuste microscópio a múltiplas demandas e realidades. Criar, testar e validar novas formas de ensinar e aprender deve ser prioridade. A forma deve ser subordinada ao sentido. Nunca o contrário.

Que o objetivo de desapegar tenha de ser necessariamente perseguido fora do sistema “formal” é quase uma tautologia. O problema, agravado no Brasil, é que o formal ocupa e sufoca todos os espaços ditos educacionais. Subordinar o sentido à forma retira muitos graus de liberdade e nos condena a permanecer em um passado pouco alvissareiro.

Distinguir o relevante

Mesmo em formas ultrapassadas de educação conviviam ensinamentos de relevância conjuntural com outros de relevância estrutural, por assim dizer. Distinguir entre uns e outros não é tarefa pacífica e requer muita reflexão, além de disposição intelectual para reconfigurar referências e ideologias.

É uma discussão para quem habita o vazio entre ontem e amanhã. Talvez você também se sinta assim. Sei que a educação que eu tive foi desalinhada, desinteressante. Ao mesmo tempo inflada e incompleta. As coisas mais interessantes aprendi fora do sistema formal (e olha que foi longevo nele…).

O que mudaria uma vida se aprendido de verdade aos 15 anos? Porque insistimos em diminuir o papel da educação na vida das pessoas? Temos que seriamente discutir o que é relevante. O quê nossos filhos precisam e merecem aprender.

O fator humano

A humanidade está em revisão. São tempos de tecnologias que nos permitem minimizar o trabalho e maximizar a desinformação. Tempos de desafios novos e gigantescos que nos exigem redefinir limites para o materialismo e a dominação da natureza.

Equipar as novas gerações com conhecimentos para lidarem objetivamente com o presente e o futuro requer uma limpeza de terreno. Não é preciso mais conteúdos. Não é preciso polarização entre conservadores e progressistas. Não é preciso adotar as últimas tendências de tecnologia em sala de aula.

Minha aposta de revisitar o passado não significa querer voltar ao passado. O que precisamos é de repertório para evitar as estruturas, armadilhas e contrabandos ideológicos que até hoje persistem como lama agarrada nos sapatos, atrapalhando a caminhada.

O mais importante a recuperar do passado, acredito, é a convicção de que, se a humanidade não começou como é hoje, ela tampouco mudou seus traços mais essenciais. Algumas das lições aprendidas nos caminhos da História são fundamentais para os momentos de grande inflexão. Exatamente como este em que vivemos.

Os desafios que o digital traz para a educação são desse tamanho. Nos próximos artigos vamos visitar alguns mais de perto.

Até lá, convido-o a registrar nos comentários um pouco de sua própria experiência com a escola e a aprendizagem. Como disse Dewey faz quase 120 anos:

“A questão não é o desperdício de dinheiro ou materiais. Essas perdas contam, mas o principal desperdício é o da vida das pessoas, da vida das crianças. Enquanto estão na escola e depois, por causa de uma preparação inadequada ou mesmo errada.”