A digitalização da economia vai eliminar muitos empregos. Porém, a destruição criativa provocada pelas inovações vai abrir espaço para novos postos de trabalho, muitos deles em novas ocupações. Exatamente como ocorreu em muitos dos eventos de mudança tecnológica na história, o medo e a resistência à mudança serão dissolvidos à medida que uma nova configuração se consolidar.

Estudos detalhados, como os da McKinsey e do WEF, tentam dar mais previsibilidade sobre quais serão as mudanças no perfil e nas demandas do trabalho. Há sempre uma boa dose de especulação em tudo que se diz sobre o futuro, mas pensar em termos de tendências é sempre bom para se refletir sobre o que está acontecendo no presente.

Apesar de todo o burburinho em torno do tal de robocalipse, o desemprego nos países desenvolvidos está em níveis historicamente muito baixos, reforçando o padrão que relaciona positivamente crescimento econômico, ganhos de produtividade e geração de empregos. O recado para os países, como o Brasil, que lutam contra a crise e o desemprego, é direto: o problema não está com os robôs! Muito pelo contrário, a automação e a digitalização seriam hoje as principais chaves para a produtividade e o crescimento.

Mas calma lá, será assim tão simples?

No fundo, o que me preocupa mesmo é não termos por aqui uma compreensão mais clara sobre o fenômeno da digitalização. E a imagem de um robô ou de uma IA tomando o seu emprego não ajuda muito. Tira o foco do importante, do fato que o digital traz consigo toda uma nova dinâmica econômica. Algo que poucos economistas, gestores e tomadores de decisão percebem com clareza e senso de urgência. Quando o digital domina um setor ele imprime sua própria essência a esse setor, tal como o viral agente Smith em Matrix. A hotelaria depois do Airbnb é diferente, a mobilidade urbana depois dos aplicativos é outra, a competição da indústria 4.0 não se dará sobre as mesmas bases.

A dinâmica econômica do digital é extremamente concentradora. Sua lógica é a da escala. A lógica das startups é velocidade e escala. E quando o custo para crescer um negócio é baixo, e o custo de reproduzir software é perto de zero, a escala ótima aumenta. O digital tem o globo como escala ótima. Não é de outra natureza a pressão crescente dos mais competitivos a favor da globalização. E em toda parte teremos cada vez menos máquinas, menos hardware, e mais software. Porque eliminar hardware, desmaterializar, ganhar eficiência energética, é viabilizar a escala global.

A tendência de concentração em negócios de alta e altíssima produtividade tem avançado firme e forte nos últimos 30 anos. A produtividade das economias avançadas cresceu e os empregos antes industriais se deslocaram em parte para atividades ligadas ao digital, com o restante indo para atividades com (por enquanto) menor automação e produtividade.

Gráfico

Fonte: http://conference.nber.org/confer/2017/AIf17/Autor.pdf

O ímpeto concentrador da digitalização favorece desigualdades de renda e de oportunidades. Mesmo dentro de um país desenvolvido, muita gente fica para trás ao não se vincular a empresas e negócios da nova economia. Todavia, os enormes ganhos dos pólos mais dinâmicos transbordam para o restante da economia, promovendo crescimento e empregos em atividades secundárias, mesmo que menos produtivas e com menores salários.

A combinação digitalização + globalização provoca também a necessidade de especialização das economias locais, única saída para manter a relevância em escala global. Não por acaso, países desenvolvidos como Alemanha, Holanda, Canadá, Austrália estão ativamente procurando estabelecer seus nichos de excelência, abandonando esforços genéricos a favor do foco em vantagens particulares.

O risco que um país como o Brasil corre é o de não ser capaz de constituir seus próprios pólos de liderança mundial e ser, para variar, impelido para a periferia, preso a relações econômicas de baixa produtividade e baixos incentivos à qualificação. Se não formos capazes de gerar e capturar valor na nova economia ficaremos todos cada vez mais pobres, excluídos do novo ciclo de desenvolvimento econômico puxado pela digitalização.

Pense nesse exemplo: o nosso agro. Temos vantagens comparativas importantes: luz solar, água e espaço. Temos também uma boa competência técnica em agricultura tropical. Mas no novo contexto de digitalização precisamos perseguir uma meta bem mais ambiciosa: a de referência mundial em agricultura digital. Só que não. Já estamos ficando para trás de países como Austrália, Nova Zelândia e EUA. Deveríamos estar lutando com muito mais afinco para ocupar o nascente espaço das agritechs (startups do agro), até porque o agro é amplo. É muito mais do que um nicho, é uma chance do nosso tamanho.

O valor agregado da produção agrícola em si não é grande coisa e ganhos de verdade dependem da existência de cadeias produtivas mais complexas que integrem indústrias, serviços e digitalização. Se essas cadeias não forem desenvolvidas por nós, ficaremos reféns de uma divisão de trabalho e especialização que tenderá a manter aqui apenas a produção física e os custos ambientais, com limitada adição de valor. E sem captura de valor não haverá de onde, nem como, transbordar valor.

Agora, para termos chance de desenvolver e digitalizar as parcelas hoje mais competitivas de nossa economia é preciso construir condições institucionais favoráveis à economia digital. A flexibilização dos contratos de trabalho é uma delas. A recente reforma na CLT foi possivelmente o melhor incentivo à inovação no Brasil em muitos anos. A rigidez contratual e os altos riscos trabalhistas eram fortes inibidores para as pequenas empresas inovadoras e para todo projeto que envolvesse incerteza e volatilidade na demanda por trabalho.

Mas ainda há muito a melhorar: simplificar a vida das empresas, dar segurança jurídica e previsibilidade, criar novos e melhores mecanismos de seguridade social, conectados a incentivos para a qualificação e a requalificação profissional. Para muita gente, as carreiras profissionais passarão constantemente por picos e vales, políticas inteligentes precisam levar isso em consideração e dar oportunidade para que as pessoas aproveitem os vales para estudar e adquirir novas competências.

Na próxima e última parte desta série de artigos o tema será a transição, este nosso dilema recorrente de ter de enfrentar o futuro antes de resolvido o passado. Como viabilizar o novo sem provocar estragos demais? Já aviso que não há, no mundo, respostas definitivas para se navegar na nova economia. E isso é bom sinal. Quando ficar claro para todos o que fazer, quando não restar mais dúvida, significa que o tempo de agir terá ficado para trás.